domingo, 2 de outubro de 2016

As Três Joias do Budismo



1. Introdução



O objetivo deste estudo é apresentar de forma bem resumida, as vigas mestras das quais o Budismo se sustenta. Todo o religioso que tem a denominação de budista deverá reconhecê-las.

Infelizmente, passados mais de dois milênios, muitas instituições religiosas não a reconhecem como princípios norteadores, contribuindo de uma forma negativa no distanciamento da profundidade dos ensinamentos, corroborando com a percepção ilusória que as pessoas têm desta doutrina atualmente.

Nas orações realizadas pelos praticantes budistas, tanto nas cerimônias diárias como nos rituais mais solenes, sejam as celebrações de nascimento de Buda (Kanbutsu-ê) ou de sua Iluminação (Shaka Jodo-ê), uma das primeiras saudações que realizam é referente às Três Joias, conhecidas também como os Três Refúgios.

As recitações, que estão com os fonemas no idioma páli e também traduzido ao português, são realizadas da seguinte forma:

Buddhaśaraṇagacchāmi- Eu tomo refúgio no Buda, o Ser Reverenciado entre os humanos;
Dhamaśaraṇagacchāmi- Eu tomo refúgio no Dharma, Reverenciado por cortar as paixões;
Saṇghaśaraṇagacchāmi- Eu tomo refúgio na Sangha, Reverenciado pelos seres reunidos. (1)

Mas o que significa cada um destes pilares espirituais e o que estes votos representam aos budistas? Vamos explicar cada um deles.



2. Buda


Quando mencionamos o termo Buda, temos que realizar a seguinte reflexão:

O Buda histórico Śākyamuni não era um deus, nem um ser divino, nem um enviado, nem um profeta. Era um homem como qualquer outro que, através de uma profunda meditação e do cultivo vigoroso da autodisciplina, atingiu um estado superior de consciência, proclamando aos outros os ensinamentos advindos dessa condição. Os Budas não históricos, também chamados de Budas Míticos, tais como Vairochana, Amitabha, Bhaisajya, Ratnasambhava, Amoghasiddhi etc., são símbolos dos estados despertos da Consciência (vide Mahavairocana Sutra), não deuses ou seres divinos que devem ser adorados ou que pairam em outra dimensão e que podem “ouvir preces”. No Budismo não há preces, rezas ou orações. As palavras recitadas são meditações que trazem à tona os ensinamentos do Buda. Os mantras são sons que visam induzir um estado límpido de concentração e facilitar o insight. (2)

O Buda, tal como conhecemos hoje, nasceu por volta de 566 a.E.C., em Lumbinī, próximo a Kapilavatthu (3), que fica situada atualmente na região do Nepal. Era integrante da família dos Sākya, cujo clã se organizava em uma república. Desde muito novo tinha uma preocupação acurada com os conflitos em que presenciava, sendo um fato de destaque quando viu dois pássaros disputarem uma minhoca, que o fez refletir sobre se haveria coerência em se afirmar a possibilidade de uma intervenção divina nos fenômenos observáveis.

Após Buda ter se casado com a Princesa Yasodhara, com a qual teve o seu único filho chamado Rahula, optou por ter uma vida fora do conforto que a sua condição social e econômica o proporcionava. A sua motivação principal era buscar um significado mais aprofundado para a sua vida, pois a vida tranquila e majestosa que tinha, não era suficiente para responder os seus questionamentos filosóficos. As questões centrais de suas indagações eram acerca dos sofrimentos mais eminentes que os seres humanos não conseguiam dissipar como o nascimento, a doença, o envelhecimento e a morte.

Imbuído desta busca, aos 29 anos, raspou os seus cabelos e se tornou um asceta. Após a tomada desta decisão, o seu único porto-seguro era a busca pela verdade. Tinha colocado a sua família, prestígio e bens materiais em patamares abaixo de sua principal obstinação. Para conseguir a realização de seu objetivo, foram necessários seis longos anos de estudos e práticas espirituais intensas. Passou por situações que por pouco custou a sua vida, como em um período que ingeria somente um grão de arroz por dia e foi salvo por uma mulher, Sujata (4), que vivia próxima da região que estava.

Mantendo a sua determinação intrépida, detinha o seguinte pensamento:

“Mesmo que o sangue se esgote, mesmo que a carne se decomponha, mesmo que os ossos caiam em pedaços, não arredarei os pés daqui até que encontre o caminho da iluminação”(5)

O evento que consumou a sua iluminação foi a meditação em que realizou em uma árvore de figueira por vários dias, hidratando-se com a água das chuvas e alimentando-se de excrementos de pássaros. A data simbólica de sua iluminação é o dia 8 de dezembro, em que pôde perceber a essência real de todos os fenômenos.

Após a obtenção de vasta sabedoria, Buda teve a sua existência dedicada a ensinar as pessoas sobre os frutos da iluminação que obtivera. Sempre ponderando sobre as condições que seus ouvintes tinham para a recepção de seus ensinamentos, para que pudesse haver um engendramento transmissível de seu pensamento.

Por volta de seus oitenta anos, após tomar uma refeição que continha uma espécie de cogumelos, Buda teve uma infecção alimentar e veio a falecer. Em seu último discurso, afirmava que não tinha deixado nenhum sucessor indicado e que seus discípulos deveriam seguir o conjunto de seus ensinamentos (Dharma). Disse sobre a importância em manter-se plenamente atento aos fenômenos, pois a falta da atenção poderia implicar em perigo à integridade, e entre as suas últimas iluminadas palavras, disse:

“Fazei de vós mesmos uma luz. Confiai em vós mesmos: Não dependais de mais ninguém. Fazei de meus ensinamentos vossa luz”. (6)

E desta maneira humana e comum, uma das pessoas mais sábias que conhecemos, deixou de estar presente em nossa realidade.



3. Dharma


Trata-se do conjunto de ensinamentos que foram estabelecidos por Buda, durante a sua vida, assim como a formulação doutrinária que amadureceu a partir de suas ideias. Nem todos os textos que temos à disposição atualmente, foram estritamente esboçados por Śākyamuni, pois muitos materiais foram confeccionados a partir da essência de seus ensinamentos.

O próprio Buda não deixou nenhum material escrito, e as primeiras transmissões foram realizadas oralmente para seus discípulos. O que evidencia o fato das ideias terem partido de uma pessoa ou de um pequeno grupo, que podemos imaginar como o núcleo que acompanhou Śākyamuni, são os fragmentos de sutras situados em um raio bastante considerável, abrangendo países como o Paquistão e Butão, cuja a linha de raciocínio percebida pelos materiais descobertos denota coerência e unidade de pensamento. Considerando a variedade de idiomas que a expansão dos ensinos obtivera, para atender os diversos povoados da Ásia.

Dentre o material contido no Dharma, tivemos uma organização em três pilares importantes: 1- Os ensinamentos Hinayana (Pequeno Veículo); 2- Os ensinamentos do Mahayana Provisório (Mahayana, Grande Veículo) e; 3- Os ensinamentos do Mahayana Verdadeiro. Este material costuma ser identificado como componentes das "Três Voltas do Dharma", cujos ensinamentos devem ser transmitidos de uma maneira gradual e sequencial, para que conforme o praticante obtenha o domínio sobre o nível anterior, poderia se apropriar dos ensinamentos da sequência, pois, se não houver a compreensão da ideia central de cada um dos grupos, o discípulo não teria as condições de absorver o grupo de doutrinas seguintes. O Dharma é classificado sob alguns parâmetros, que discorreremos brevemente, conforme no Livro de Serviços Diários da utilizado pela THIRB (7).

Quanto à cronologia de sua exposição, temos o Período Avatamsaka (Kengoji) que foi proferido nas três semanas seguintes à iluminação de Buda, que buscou através do Sutra Avatamsaka descrever a essência da iluminação. Adiante, o Período do Parque dos Cervos (Rokuonji), em que após a exposição do Sutra citado, no período anterior, não ter sido compreendido pelos discípulos de maneira adequada, Buda se propôs a dissecar os conceitos que fossem melhores transmissíveis, entre eles o das Quatro Nobres Verdades e dos Doze Elos da Originação Dependente. Na sequência veio o Período do Mahayana Elementar (Hodoji), cujo o foco foi a exposição dos conceitos básicos do Mahayana, através da apresentação da ideia do bodhisattva ser predominante sobre o Arhat. O penúltimo Período, Prajña (Hannyaji) foram marcados pela exposição dos conceitos de Shunyata (Vazio) através dos Sutras Prajña PāramitāE, por fim, o Período do Lótus e do Nirvana (Hokke-neham-ji) que foi vigente nos últimos oito anos da vida de Buda, em que foi estabelecido o conceito de veículo único (Ekayāna). Nesta fase desmistifica os contrastes dos ensinamentos, e é demonstrado que a figura de linguagens e as aparentes contradições são convergentes de uma única verdade.

Existem outros conceitos que demonstram a estrutura do Dharma, como em relação a seus métodos (Kegi no shikyo) e ensinamentos doutrinais (Keho no shikyo), assim como existem conceitos que desdobram suas “Verdades”, conceito este denominado “Santai”, e que estudam “Os oito níveis de consciência”, denominado “Hasshiki”.



4. Sangha


Diz respeito à comunidade budista, que busca ter a sua vida de acordo com o que é previsto no cânone budista. Uma Sangha somente poderá ser composta por pessoas que tenham o mesmo ideal consonante ao Buda e ao Dharma. Um grupo de pessoas que não tenham estes elementos, podem ser remetidos à uma agremiação ou uma organização religiosa, com até os devidos registros previstos em lei, mas não poderá portar o nome de “Sangha” de fato.

Diferente do que se costuma difundir, o budismo está mais para um conjunto de práticas de cunho metafísico do que para uma religião. A metafísica, por sua vez, tem sido interpretada como elementos que não sejam identificáveis próximo de conjunto de práticas supersticiosas. Mas contrária a estas ideias, a metafísica nos remete à elementos que não sejam tangíveis, e que contenham elementos supra-humanos, conduzindo o homem a um ideal superior, que esteja “acima” do que seja “físico”. Partindo destas ideias, pelo fato do budismo ter um viés metafísico elevado, é mais importante que os praticantes budistas sejam harmoniosos com os ensinamentos do que buscarem em uma comunidade o seu auto aprimoramento.

Mas, se é mais importante conceber os ensinamentos de maneira individual, qual é o sentido e a razão para pertencer à uma Sangha? Os motivos mais importantes são a oportunidade de receber os ensinamentos por pessoas que sejam familiarizadas aos sutras e as práticas budistas; e que os seus integrantes possam apoiar-se mutuamente, visto que a mudança de um padrão espiritual, que oportunize o praticante a identificar e a compreender o cenário atual, baseado em referências da Tradição, proporciona ao praticante muitos desconfortos, pois a essência de tudo que fora ensinada por Buda tem se tornado cada vez mais incompreensível para a sociedade moderna. Neste conceito, poder se apoiar em uma Sangha é crucial para o budista poder não ser acometido pelas frustrações.

A primeira Sangha que podemos apontar, foi a dos discípulos que acompanharam Buda por sua jornada. Nos sutras, são citadas as relações que os seus integrantes portavam, assim como as características que tinham. Temos exemplos de citações no Sutra do Lótus, que Śākyamuni chama a atenção de Shārisuta (8), pelo fato de ser um discípulo questionador, embora em outros momentos é descrito como um dos discípulos mais inteligentes. Ananda também é citado por sua memória fora do comum.



5. Conclusão


As Três Joias do Budismo têm um caráter inegociável a qualquer praticante budista, para ser possível progredir espiritualmente. O reconhecimento do poder salvífico de Buda, na condição de que apenas a sabedoria pode mudar a condição do indivíduo, pautada na moralidade e na disciplina, jamais pode ser substituído por qualquer culto a um ser onipresente que tenha poder de realizar alguma ação, ou seja, a referência que se tem de Buda é no sentido de ter gratidão a seus ensinamentos, e não no sentido de pedir algo que atenderá aos anseios mundanos de quem quer que seja, através de alguma graça.

O Dharma, por sua vez, contendo todo o seu material doutrinário, deve ser visto como um oceano que o praticante poderá navegar, sem restrição, com a preocupação de contextualizar a doutrina ao período em que esteja vivendo, e não fazer interpretações tendenciosas que leve o praticante a erros graves, como nas falhas de interpretação sobre o vegetarianismo, relativizando a necessidade de deixar o consumo da carne, sendo que se trata de uma condição sine-qua-non para o aperfeiçoamento do budista.

A Sangha, atualmente, deve ser vista como um “apoio” ou mesmo um “aconchego”, para discutir os assuntos doutrinários, para tornar a permanência neste mundo mais branda, e que os integrantes possam se corrigir mutuamente quando for necessário, para os elementos fundamentais não serem negligenciados ou alterados em sua substância, de maneira que comprometa a autenticidade e ortodoxia dos ensinamentos.





Referências:
1- Liturgia de Serviços Diários da Tendai Hokke Ichijō-Ryū, Pág. 12
2- Liturgia de Serviços Diários da Tendai Hokke Ichijō-Ryū, Pág. 01
3- YOSHINORI, T; ET AL. Espiritualidade Budista I; [tradução de Maria Clara Cescato]. São
Paulo: Perspectiva, pg. 03, 2006.
4- Bukkyo Dendo Kyokai. A Doutrina de Buda, Pág. 17
5- Bukkyo Dendo Kyokai. A Doutrina de Buda, Pág. 18
6- Bukkyo Dendo Kyokai. A Doutrina de Buda, Pág. 21
7- Liturgia de Serviços Diários da Tendai Hokke Ichijō-Ryū, Pág. 09 a 11
8- TOLA, F; e DRAGONETTI, C. Sutra do Lótus da Verdadeira Doutrina. New Jersey:
Primordia, pg. 116, 2006.